Júlia Louzada

Júlia Louzada, é psicologa, psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da USP. Com dissertação em processo de escrita referente a Fome no Brasil e Sofrimento Sociopolítico. Compõe também a RedIPPol – Rede Interamericana de Pesquisadores em Psicanálise e Política. É feminista e anti-imperialista. Escreve textos acadêmicos, é colunista do jornal Brasil de Fato, também escreve em guardanapo de papel em bares e cafés, em geral sobre Psicanálise e Política. Lê e escreve para sobreviver. Aqui reune publicações, memórias e outras palavras

Uma escritora de obituários


Texto originalmente publicado no boletim on-line número 75 do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
2025

Há exatos dez dias escrevi um texto para um jornal. Falava da morte de Pepe Mujica, mas escrevia, na verdade, sobre sua permanência. Preferi falar do que nele ficou aceso — o jeito de viver como se a vida coubesse em uma horta, na sua cadeira de madeira, em um cachorro dormindo aos pés, num fusca, em um amor de uma vida toda e num país que ainda pudesse ser justo.

Não escrevi sobre a morte. Escrevi sobre a centelha.

Hoje, sou chamada de novo à escrita — mas não por um artigo. Quem me chama é a ausência de Sebastião Salgado.

Escrevo não para informar. Escrevo para não naufragar.

Há perdas que são como fendas no tempo. Não se atravessa ileso.

Ele — que fotografava como quem escuta. Que enxergava não apenas com os olhos, mas com a memória do mundo. Que revelava com luz aquilo que tantos tentavam manter na sombra.

Sebastião era um homem da terra — e não só da terra geográfica, mas da terra viva, que pulsa sob os pés, que sangra quando esquecida.

Foi ele quem gritou a Amazônia em silêncio, com imagens.

Foi ele quem se deitou junto aos mortos do massacre dos Carajás, não para enterrá-los, mas para devolvê-los à história.

Agora, ele vive em minhas paredes. Mas mais do que isso — ele repousa em minha escuta em frente ao meu divã, e em meu modo de olhar.

Talvez, além de analista — alguém que aprende a formular lutos com os outros — eu tenha me tornado uma mulher que escreve obituários.

Obituários que não fecham uma vida, mas a alargam. Que não dizem “acabou”, mas murmuram: “olhe bem, ele ainda está aqui”.

Escrevo porque há palavras que sustentam o que o corpo já não pode.

Escrevo porque há mortes que pedem vigília.

E porque escrever, às vezes, é meu jeito de tocar o que já partiu.

Meu modo de lembrar que a vida é feita não só de começos — mas de insistências.

E há vidas que insistem mais do que a morte.

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[1] Psicanalista, ex-aluna do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.