
Hoje faz vinte e quatro anos. Não da morte — porque quem escreveu como Jorge escreveu não morre — mas da partida. Como se tivesse se afastado devagar, à maneira dos que sabem que serão lembrança viva antes mesmo de virar ausência.
E eu lembro, não com a lembrança que olha para trás, mas com aquela que ainda pulsa no agora, de Capitais de Areia, o primeiro encontro. Nomear os meninos da rua assim: com dignidade e beleza. Como quem compreende que o abandono também é um país, e que há reis silenciosos andando descalços sobre os cacos da cidade.
Depois, aquele amor entre um gato e uma andorinha. Um amor sem futuro. Um amor que não cabe. Um amor que não é permitido porque não faz sentido, e por isso mesmo, é o mais real. Ali percebi que Jorge nunca prometeu finais felizes, só prometeu a vida, que é bem mais vasta e, às vezes, mais cruel.
Desceu, depois, aos subterrâneos. Da liberdade, do país, da alma. Tinha política no sangue e escrevia como quem também gritava. Era escritor, sim, mas também deputado, comunista, corpo presente na luta.
E no cruzamento do meu catolicismo mineiro com os encantos de um terreiro das Bahia Geraes, surgiu o Compadre de Ogum, com a bença de Mãe Menininha. E tudo que parecia oposição passou a coexistir, santos e orixás sentados à mesma mesa, como numa ceia de sincretismos inevitáveis.
Vieram, então, as mulheres. Ah, as mulheres. Gabriela, livre até no perfume. Dona Flor, que amou dois. Tieta, com sua insolência redentora. Tereza Batista, cansada de guerra, marcada e resistente. Elas me ensinaram que o feminino não se aprende ou performa, se reconhece. Nas suas palavras o feminino acende, e não era frágil, era força contida sem medo de ser usada.
No meio disso tudo, Zélia. Não como apêndice, mas como parte da espinha dorsal de um amor que se escreve e se reescreve. E Caribé, Dorival, os amigos que não eram apenas amigos, eram extensões da mesma Bahia mágica e profunda que Jorge inventou e desvelou.
Jorge Amado me habita, não como livro na estante, mas como voz interna. Ele está na forma como nomeio o mundo, na forma como olho o outro, na forma como aceito a contradição.
Ele está, talvez, em todos nós. No que há de humano, contraditório, amoroso. Na vontade de passar a vida olhando o mar.
Viva Jorge Amado.
