Júlia Louzada

Júlia Louzada, é psicologa, psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da USP. Com dissertação em processo de escrita referente a Fome no Brasil e Sofrimento Sociopolítico. Compõe também a RedIPPol – Rede Interamericana de Pesquisadores em Psicanálise e Política. É feminista e anti-imperialista. Escreve textos acadêmicos, é colunista do jornal Brasil de Fato, também escreve em guardanapo de papel em bares e cafés, em geral sobre Psicanálise e Política. Lê e escreve para sobreviver. Aqui reune publicações, memórias e outras palavras

O lixo vai falar e vai cantar na boa: o Brasil de Lélia, Oruam e Poze

Este texto é publicado aqui de forma inédita, por não ter encontrado um veículo adequado à sua correspondência crítica e estética. Foi redigido originalmente no dia 30 de maio de 2025, após a prisão de Poze. Volto nele hoje, procurando nele algum conforto mesmo que individual, para tentar elaborar a barbárie da chacina do Rio de Janeiro, uma das mais violentas operações policiais da década. E onde Oruam e MC Poze foram dois dos artistas que se pronunciaram publicamente com maior contundência, denunciando o racismo estrutural e a violência do Estado contra corpos negros e periféricos

A prisão de MC Poze do Rodo não é um fato isolado. Não é um erro jurídico, uma exceção ou um excesso. É a repetição violenta de uma lógica estrutural que, desde sempre, condena à punição os que ousam falar a partir do lugar do descarte. Como ele mesmo canta ao lado de Oruam, na música Madrugada é solidão: “a esperança vem do lixo”. E o sistema não suporta a esperança que brota onde supostamente só deveria haver silêncio, sujeira, invisibilidade. Não se trata apenas de um jovem negro, favelado, artista, preso sob a acusação de “apologia ao crime”. Trata-se da criminalização da linguagem quando ela parte de corpos racializados e periféricos que recusam o silenciamento. Corpos que não apenas sobrevivem, mas cantam, criam, narram e, com isso, desestabilizam uma ordem social fundada no extermínio simbólico e material das favelas.  

E há um nome, há uma força arquetípica que atravessa esse gesto: Exu — senhor das encruzilhadas, mensageiro, aquele que come, fala, dança e atravessa fronteiras. Exu, associado à rua, ao preto, ao profano e ao excesso, é quem fala do lixo, e não só fala: transforma. Como Exu, Poze e Oruam inscrevem-se na linguagem para afirmar: onde esperavam silêncio, sujeira e invisibilidade, há festa, fome, desejo e criação. Para pensar esse gesto, convoco Lélia Gonzalez: “É o lixo que vai falar, e vai falar na boa.”, por que “nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim determina a lógica da dominação” (GONZALES, 1984, p. 22) Essa fala ressoa como um estilhaço contra os projetos que tentam interditar a arte que emerge das bordas — como a chamada “Lei Anti-Oruam”, que propõe proibir o financiamento público de eventos e artistas como Oruam, MC Poze do Rodo e tantos outros. 

A própria lei se nomeia contra um artista, como se nomear o inimigo fosse parte da estratégia de silenciamento. Mas o que essa lei escancara é justamente aquilo que tenta calar: que há potência cultural e política na arte das quebradas. E que essa potência assusta. O gesto de cantar sobre a própria trajetória — “Eles fala de mim, inimigo é assim, olha que coisa louca / O amor da minha vida é desde o tempo da boca” — não é apenas um relato íntimo. É uma inscrição política. Uma fala insurgente. Uma recusa radical do lugar designado pelo racismo estrutural: o lugar do silêncio, da abjeção, do lixo. Aqueles que recusam o silenciamento e reivindicam a potência de Exu: quanto mais comem, mais querem comer; quanto mais falam, mais querem falar. Corpos que não apenas sobrevivem, mas criam, cantam, dançam, proliferam narrativas — e, com isso, desestabilizam uma ordem social fundada no extermínio simbólico e material das favelas. 

Frantz Fanon nos ensinou que a colonização não apenas explora: ela cria o ser negro como “quintessência do mal” (FANON, 2005, p.?), como corpo condenado à zona do não ser. Não há espaço, nesse arranjo, para a complexidade das subjetividades negras. Como ele afirmou, a colonização engendra mecanismos que padronizam o ser negro, apagando as diferenças, eliminando a singularidade, e, principalmente, criminalizando qualquer tentativa de expressão. A palavra quando ela escapa do lugar do lixo e ganha forma de música, cultura, discurso é a esperança que vem do lixo. E é por isso que querem calar. A acusação que recai sobre ambos — a de que a arte seria “apologia ao crime” — é, na verdade, um exemplo clássico desse dispositivo colonial de silenciamento. O que está em jogo não é a suposta defesa do crime, mas a tentativa de interdição de uma fala que revela as estruturas que forçam muitos jovens negros e favelados a ingressar na vida do crime como estratégia de sobrevivência. 

Como eles mesmos cantam: “O moleque novo se impressiona com a vida do crime/ Qual é o pecado conquistar mulher e ter dinheiro?/ Mas, na verdade, só queria impressionar o mundo/ Todo ódio guardado é combustível pa chegar em primeiro” Há nesse trecho uma elaboração sofisticada sobre o processo de subjetivação de jovens periféricos: a sedução simbólica do crime, a tentativa de conquistar visibilidade, reconhecimento, um lugar de existência possível. Não há apologia, há denúncia, elaboração e resistência. Mas o sistema prefere ouvir como ameaça aquilo que, na verdade, é uma fala de vida. O sofrimento que atravessa essas trajetórias não é um sofrimento privado, isolado, desvinculado das determinações sociais. Lélia Gonzalez adverte: o sofrimento não pode ser reduzido a um dado individual, mas deve ser compreendido em sua dimensão estrutural, coletiva, institucional. 

Oruam e Poze, como tantos outros, cantam o sofrimento da sobrevivência. Não a angústia existencial da classe média, mas o sofrimento concreto, visceral, de quem se vê forçado a disputar espaço na precariedade, na violência, na ausência de direitos. “Adora julgar minha luta, mas não vem da onde eu venho / Não sabe o que eu sofri, o que eu passei pra tá aqui”, canta ele. E quem poderia saber? Na chave psicanalítica, poderíamos dizer que a letra da música é uma tentativa de simbolizar o real do sofrimento. De transformar em discurso aquilo que, para muitos, permanece como violência muda, como dor sem linguagem. Mas, ao invés de ser escutada como elaboração, a sua fala é punida como apologia. O sistema jurídico e midiático responde não com acolhimento, mas com repressão.

Esse é o ponto que Lélia Gonzalez explicita ao falar da criminalização das necessidades da sobrevivência. O sistema não apenas exclui: ele transforma em crime as estratégias criadas pelos sujeitos para sobreviver à exclusão. Como no caso das mulheres negras, que, segundo Lélia, são historicamente coisificadas, desumanizadas, tendo suas necessidades básicas — alimentação e moradia — transformadas em atos criminosos. A cultura política do Brasil é a da criminalização da vida negra. Fanon descreve em Os Condenados da Terra, “O colonizador fabrica o colonizado. A partir de textos, imagens, instituições, modos de vida, o colonizado é modelado e alienado”, se ilustra nesse trecho “Me culpam por ser ruim, sou só um monstro que vocês criou”, da música. É uma enunciação que expõe de forma brutal o mecanismo colonial: o sistema cria as condições que empurram sujeitos negros para a criminalização, e depois os pune por responderem a essas mesmas condições.

A radicalidade que insiste em Oruam e Poze está na tentativa de quebrar esse ciclo: ao cantar, eles se deslocam do lugar da passividade para o da referência. Nomeiam, denunciam, elaboram. Fazem da arte uma prática de resistência, questionando estruturas de poder. Um modo de inscrever-se como sujeitos falantes, desejantes, políticos. Por isso, não surpreende que a prisão de Poze tenha sido acompanhada por um gesto coletivo de solidariedade: o chamado para que quem se manifestasse por sua liberdade levasse também um quilo de alimento. Levar um quilo de alimento à manifestação por Poze é, portanto, mais do que um gesto de apoio: é um ato político que explicita a relação indissociável entre liberdade e sobrevivência. Não se pode falar de liberdade se a fome estrutura a vida. Esse gesto, simples e potente, articula duas dimensões fundamentais: a luta pela liberdade e o combate à fome. É a materialidade da ideologia, quem quer ser livre tem um corpo, tem cor, e habita um lugar específico nas margens e nos morros das cidades.

A fome, como Carolina Maria de Jesus tão visceralmente escreveu em Quarto de despejo, não é apenas uma ausência biológica. É um lugar social. Carolina descreveu com crueza: “Hoje não comi nada. Fiquei o dia inteiro com fome.” E esse ficar com fome não é uma escolha, não é um acidente: é um destino imposto. Maria Carolina, Lélia, Oruam e Poze se encontram nas letras, trata-se da criminalização das necessidades básicas de existência.

O que está em jogo na prisão de Poze e na proposta de “Lei Anti-Oruam” — e nas inúmeras outras prisões, mortes e silenciamentos de jovens negros e periféricos — é a tentativa de manter intacta essa ordem. De impedir que o lixo fale, que a esperança floresça, que a arte periférica desestabilize o pacto colonial. Não se pode falar de justiça se os corpos negros seguem condenados ao lugar do lixo. Mas, como afirma Lélia: “o lixo vai falar e vai falar na boa”. E é isso que assusta o sistema. Que os corpos relegados ao lixo, à zona do não ser, à exclusão total, não apenas sobrevivem, mas falam, criam, dançam, cantam. O funk, o rap, a literatura periférica são práticas estéticas e políticas que recusam o lugar do descartável e afirmam: somos sujeitos, temos história, temos linguagem, temos desejo. Como cantam eles, “todo ódio guardado é combustível pa chegar em primeiro”. A transformação do ódio em arte, da dor em criação, do lixo em esperança: essa é a potência revolucionária das culturas periféricas.  Isso é o que o sistema não suporta. Mas a fala já se fez ouvir — e Exu não se cala. Ele atravessa o funk que vibra nas ruas, as palavras que Carolina de Jesus escreveu com restos de papel, as análises de Lélia, as teorias de Fanon, e os corpos que se recusam a ser silenciados. Exu passa — e, com ele, a festa, a fome e a fala.

O lixo não vai só falar, vai cantar também. Na boa.

P.S. Enquanto este texto era escrito, MC Poze do Rodo lançava “Desabafo 2”: uma música com letra inédita e um videoclipe construído com imagens de sua própria prisão. Em menos de 24 horas, o vídeo ultrapassou dois milhões de visualizações no YouTube. Mais uma vez, ele prova aquilo que insistem em negar: sou artista. O gesto de Poze é direto e radical: transforma o cárcere em criação, a vigilância em videoclipe, a repressão em ritmo. De dentro da cela ou das brechas da rua, ele canta — na boa: “Deixa os moleque viver, deixa os moleque sonhar/ Deus que faz acontecer, nada pode me parar/ É que eu sou viciado em vencer, eu nasci pra brilhar/ O que faz eles tremer é o brilho do meu olhar.’’

PS1: Após sua redação, o rapper Oruam (Mauro Davi dos Santos Nepomuceno) também foi preso — em 22 de julho de 2025, no Rio de Janeiro — sob acusação de tentativa de homicídio qualificada, tráfico de drogas e associação ao tráfico, entre outros crimes. A Justiça manteve a prisão preventiva alegando “risco à ordem pública”. Em agosto, ele foi transferido para o presídio de Bangu 3, classificado como “preso de alta periculosidade”. Em carta pública, Oruam reconheceu “erros”, mas afirmou ser vítima de injustiça e perseguição, negando qualquer envolvimento com o tráfico e reivindicando sua identidade como artista periférico.

PS2: Volto ao texto, procurando nele algum conforto mesmo que individual, semanas após a soltura da prisão de Oruam, quando o Rio de Janeiro viveu uma das mais violentas operações policiais da década. A maior chacina da história do Rio de Janeiro, comandada por Cláudio Castro, resultou, segundo organizações de direitos humanos, em quase de 200 mortes. A ação foi denunciada como um massacre por lideranças comunitárias e ativistas, que apontaram a continuidade de uma política de extermínio racial e territorial nas favelas. Após o episódio, Oruam e MC Poze foram dois dos artistas que se pronunciaram publicamente com maior contundência, denunciando o racismo estrutural e a violência do Estado contra corpos negros e periféricos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatino-americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

ORUAM; MC POZE DO RODO. Madrugada é solidão: Mainstreet Records, 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=67i6UhQ_jJI. Acesso em: 5 jun. 2025

MC POZE DO RODO. Desabafo 2: Mainstreet Records, 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CWt9BAeZh5I. Acesso em: 5 jun. 2025..