Júlia Louzada

Júlia Louzada, é psicologa, psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da USP. Com dissertação em processo de escrita referente a Fome no Brasil e Sofrimento Sociopolítico. Compõe também a RedIPPol – Rede Interamericana de Pesquisadores em Psicanálise e Política. É feminista e anti-imperialista. Escreve textos acadêmicos, é colunista do jornal Brasil de Fato, também escreve em guardanapo de papel em bares e cafés, em geral sobre Psicanálise e Política. Lê e escreve para sobreviver. Aqui reune publicações, memórias e outras palavras

Travessuras com Travessões

(Ou o perigo de escrever com seriedade demais)

Esses dias fui escrever um texto sério — coisa séria mesmo — e dei de cara com o travessão.
Sim, o travessão — aquele risco longo que parece querer cortar o ar entre uma palavra e outra, ou talvez só marcar o lugar onde o pensamento se esconde. E fiquei logo pensando que agora quem sabe escrever com travessão corre o risco de estar fazendo travessura.

Eu queria escrever sobre psicanálise — veja bem, Tania Rivera falava da fantasia da psicanálise com um encontro brasileiro de travessura — e eu achava aquilo bonito demais para deixar passar.
Ela dizia mais ou menos assim:
“Esta reviravolta entre sujeito barrado e objeto a desmonta e remonta sutilmente a fantasia, em ato, em um circuito sem fim que refaz e subverte o espaço. Em vez da travessia da fantasia que deve se consumir, em ato, destituindo o sujeito e tendo como resto o objeto a, talveze a arte nos convide a retorcê-la um tanto, realizando uma espécie de travessura da fantasia: dobra nela mesma que, num mesmo golpe, esgarça seu furo e diante dele ergue um muro.”

Mas — no fim — não saiu psicanálise.
Saiu leitura à brasileira — meio torta, meio alegre, meio confusa — com cheiro de café e papel.

E foi aí que o travessão começou a me provocar.
— E você se atreve a fazer travessuras com travessões? — me perguntou, assim, com essa sintaxe atravessada.
Fiquei muda.

Lembrei da professora Lucrécia, do Colégio Batista — aquele que meus pais mineiros catolaicos com pé no terreiro escolheriam depois do Santos Anjos, o colégio católico.
Dona Lucrécia explicava os usos do travessão com toda a solenidade de quem ensina a usar espada.
— O travessão — dizia ela — serve para indicar a fala dos personagens; para isolar uma oração intercalada; e para destacar uma informação com ênfase.
Três usos — três travessias.

Mas confesso — o travessão do computador não tem muita graça.
É tudo igual, tudo liso, tudo digital.
Gracioso devia ver o travessão antigo — grande, pequeno, torto, comprido demais, feito à mão — como se a caneta também participasse da travessura.

Lembro de achar bonito o travessão feito à mão.
Uma vez inventei de enfeitar o meu — fiz com ondas, tipo do mar.
Professora Lucrécia não gostou.
Disse que aquilo era um “tiu” — e que o “tiu” só podia ser usado como chapéu de letra, não como travessura.
Achei sem graça.
Na minha família, “tio” faz é travessura e piada de pavê.

A sala era enfeitada com formigas — Os Esmilinguidos — aquelas formigas gigantes e coloridas de um desenho meio crente.
Enquanto a professora falava das regras da gramática, elas me olhavam das paredes com um tipo de fé alegre e açucarada.
E eu, de caderno aberto, já sonhava em escrever um pecado com letra cursiva.

Rubem Alves dizia que escrever é brincar com o invisível — e Adélia Prado jurava que até o erro tem alma.
Manoel de Barros, ah, ele faria do travessão um passarinho com uma perna só.
E eu — entre um risco e outro — percebi que escrever é mesmo uma travessura: um modo de abrir fendas na gramática e deixar o espanto entrar.

No fim, o texto, que era coisa séria, virou brinquedo.
E o travessão — esse traço atrevido — ficou rindo de mim, como quem diz:
— Viu? Eu também sei fazer psicanálise.

Talvez ainda haja gente — dessas raras, de letra firme e olho demorado — que use travessão à mão, sem medo de errar. E sem ter medo de ser confundida com IA.

E talvez a verdadeira travessura seja esta: continuar escrevendo, mesmo sabendo que cada palavra ainda é fantasia, um risco que se atreve a atravessar o papel.

Referências:

Adélia, Rubem e Manoel – que me ensinaram travessuras.

Professora Lucrécia – que me ensinou travessão.

RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013.