
Crônica escrita para o Boletim online do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, inspirada no Congresso da FLAPPSIP 2025, realizado em Lima, Peru. Encomendada por Sílvia Nogueira de Carvalho, num cochicho do auditório, animada pela frase de Silvia Alonso: “Vamos ao trabalho” e pelos muros de Barranco, que diziam: “Mucho a hacer, mucho a soñar.” Endereçada aos colegas que estiveram, ou tiveram notícias do congresso, foi rabiscada nos materiais impressos do evento, entre cafés e piscos, com o mesmo espírito de quem escreve para não deixar o assombro se dissipar.
Publicado originalmente no Boletim On-line edição 77 – do Departamento de Psicanálise do Instituo Sedes Sapientiae
Assombrar-se é verbo em movimento. Não se conjuga no passado nem se acomoda no presente. Assombrar-se é permanecer atento, exposto, ferido de mundo. Foi esse o gesto que a FLAPPSIP propôs em Lima, uma travessia coletiva sob o céu quase imóvel do Pacífico, onde o sol parece se esconder.
Nos reunimos nos arredores do Parque El Olivar, que guardava o silêncio das oliveiras antigas que viram impérios passarem, as democracias se construírem e cambalearem. Talvez tenha passado por lá José Carlos Mariátegui[2], aquele marxista peruano, um dos primeiros leitores de Freud na América Latina, que em sua revista Amauta, em 1928, publicou textos sobre psicanálise, entre eles “Freudismo e marxismo” e “Freudismo en la literatura contemporánea”. E que nos seus Sete ensaios de interpretação da realidade peruanajá intuía que compreender um povo exigia escutar também o que nele sonha e delira, gesto que, de algum modo, antecipava a escuta psicanalítica de nosso continente.
O congresso foi antecedido e permeado por caminhadas: pelas ruas, pelos museus, pelas conversas que se prolongavam sem roteiro. Havia ceviches e sorrisos, ruínas em formato de bibliotecas, vozes misturadas em espanhol, português e a síntese do portunhol. No Museo Larco, o barro lembrava que toda forma nasce de um gesto inacabado. No antigo Museo del sexo, agora Galería erótica, o deslocamento do acervo à arte diz de um tempo em que o corpo está em disputa. No Museu da tecelagem, os fios e tecidos desenhavam, com paciência, a metáfora do que somos: tramas, encontros, intervalos.
Nossa mirada sobre essas tramas antecipava algo nosso que marcaria o congresso. Éramos cerca de cento e cinquenta brasileiros –intensos, entre quatrocentos participantes de tantos países do sul. E havia nos nossos trabalhos uma marca, um pulso novo. Uma psicanálise com cor, com corpo, com território. Uma psicanálise que se faz em clínicas públicas, em ocupações, em grupos, em cozinhas, e que se deixa atravessar pelas praças, pelas ruas e pelos gestos políticos e pela arte. Trabalhos nascidos de um país que há pouco recuperou a democracia e que ainda luta por sustentá-la. Nossas falas traziam essa mistura, rigor e ginga, teoria e urgência, o pensamento atravessado por vozes múltiplas. Havia algo ali sendo construído: uma psicanálise que não teme se aproximar do vivo, do que dói e pulsa. E que é ainda por vezes questionada. Mas entre os corredores, as mesas e os intervalos, era possível perceber: algo novo está se tecendo neste sul do mundo.
Nesse compasso estava Isildinha Baptista Nogueira toda de branco, numa sexta-feira de Oxalá, como acontecimento ético e estético. Falava sobre o efeito do racismo no narcisismo do sujeito negro, e o auditório, em silêncio profundo, parecia respirar junto com ela. Uma conferência magistral, aplausos de pé: não homenagem, mas reconhecimento de uma psicanálise que se expande ao incluir o que foi excluído, que se faz mais verdadeira quando atravessada pelo mundo. Nesse mesmo dia, se somaram nesse movimento jovens analistas em formação, estudantes peruanos ergueram a própria voz, denunciando a política do país dentro e fora das mesas.
Ainda sobre as nossas marcas, no dia seguinte, somos brindados com o documentário de Miriam Chnaiderman, que se fez resposta visual, ritmada e política a um conferencista em retirada. O cinema veio ocupar o espaço com imagens e corpos, gesto poético de resistência e continuidade. Enquanto muitos permanecem, outros chegam; e, na intensidade do encontro, algo se reconfigura.
Essas cenas: o filme, o aplauso, a denúncia, o murmúrio das conversas, são o tecido invisível do congresso. Delas nasce o verdadeiro trabalho, aquele que não cabe nos anais, mas se prolonga em cada escuta, em cada transmissão, em cada corpo que volta transformado.
A psicanálise latino-americana, com sua vocação para o deslocamento, continua se inventando nesse assombro. O que parece recusa é, na verdade, a forma como o pensamento se protege da paralisia. O assombro é o modo latino de resistir: é movimento, é insistência, é o desejo de não ceder à domesticação do saber. Lima nos devolveu essa lição: que o pensamento também precisa respirar neblina. Que há beleza no cinza, vigor na ausência do sol, mas que precisamos aproveitar todo raio de sol. Que o barro, o fio e a palavra são feitos da mesma matéria, pois o assombro é uma forma delicada de compromisso.
Somamo-nos aos escritos que já narraram os assombros coletivos e individuais e trazemos para casa o trabalho. Silvia Alonso, ao encerrar o texto de abertura, disse o que agora ressoa como convocação e destino: “Vamos ao trabalho!”
E o assombro, companheiro estranhamente familiar, sorriu. Porque o trabalho da psicanálise começa sempre aí, onde o espanto se transforma em gesto, e a escuta encontra, no outro, a promessa de algo novo.
Agora, começamos a preparar o próximo congresso, em 2027, em casa.
E o trabalho, sabemos, já começou.
Entre papéis, cafés e travessias, seguimos tecendo.
Costurando com barro, fio e desejo.
O assombro, aqui, na nossa cozinha, é tempero.
[1] Júlia Louzada é brasileira, psicóloga e psicanalista. Foi aluna do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e aprimoranda na Clínica do Insituto Sedes. É mestranda no programa de Psicologia Clínica da USP, e pesquisadora vinculada ao PSOPOL – Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política, no eixo de pesquisa: Psicanálise, Política e Crise Climática. E compõe o Grupo de Trabalho de Práticas Psicanáliticas Situadas na RedIPPol – Rede Interamericana de Pesquisadores em Psicanálise e Política.
[2] MARIÁTEGUI, José Carlos. Freudismo y marxismo. Amauta, Lima, n. 17, 1928. Publicado posteriormente em: MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras completas. Lima: Biblioteca Amauta, 1959. v. 13. MARIÁTEGUI, José Carlos. Freudismo en la literatura contemporánea. Amauta, Lima, n. 16, 1928. Publicado posteriormente em: MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras completas. Lima: Biblioteca Amauta, 1959. v. 13.
Ps: Recomendo as leituras e as psicanalistas que me acompanham na escrita das crônicas na página!
